Há livros que nos tiram da rota. São como naves que abduzem, absorvem, puxam para si. Ímãs em forma de texto, título, capa, contracapa, lombada, textura, cheiro. Então a gente se deixa levar por essas máquinas de sonhos que nos conduzem a outros mundos, fronteiras, tempos, dimensões. Passamos a viver a vida de outro. E mais outro. E quantos mais existirem nas histórias. Transitamos na curva das páginas, no horizonte das linhas, no vão das entrelinhas. Caminhos que nos apresentam diferentes cenários, ambientes, atmosferas. E uma vez lá, nossa própria vida vira quimera. Buraco de Alice. Tornado de Dorothy: estamos no “para além”. Não há mais aqui nem agora (tampouco o mundo lá fora).
Foi assim que me senti ao entrar de corpo e alma no tempo e no vento de Os malaquias, primeiro romance de Andréa del Fuego (em edição caprichada da Editora Língua Geral, 2010). Um texto maduro. Fruta carnuda colhida na hora certa. Narrativa de versos lindamente disfarçados de prosa.
E no exercício de um paradoxo delicioso, a moça do fogo contradiz seu pseudônimo e nos presenteia com águas de rio. De mar. De uma hidrelétrica que se instalará em local de desvario. Lugar de falas pausadas. Longos silêncios varrendo uma terra fértil de dramas e de planícies poéticas. Espaço sob medida para adventos misteriosos capazes de inundar a vida dos habitantes de Serra Morena, onde se passa boa parte da trama.
Nesse solo encharcado de enigmas, um raio lançado pela flecha da tempestade é o divisor das águas que separam as crianças Nico, Júlia e Antônio Malaquias, irmãos que, do tal raio em diante, viverão experiências inundadas de real e de surreal. Trindade de solidões entranhadas. Tríade de memórias dispersas que, um dia, talvez, poderão se unir como peças de um quebra-cabeças.
Andrea burilou o texto. Teceu. Tramou. E deu à luz dizeres prenhes de símbolos, códigos e nuances. E munida de seu fuego, a moça aqueceu, cozinhou e nos serviu um relato polvilhado de episódios fantásticos dispostos em capítulos que lembram notas em sobressalto: stacatto. Suspensão de tempos e espaços.
Na noite em que comecei a ler, fiquei tão impressionada que, por vezes, pensei ter tido febre. Calafrios. Espécie de desmaio em beira de rio. Sensação de frio na barriga – como quando a gente desliza pelo arco-íris. Mas o que foi aquilo, afinal? Ouso dizer que foi misto de delírio e de vício. Dependência de virar a página. Vontade de saber tudo sobre os personagens. Muitos deles duplos irmanados e recorrentes, como o casal de crianças gêmeas e as velhas também gêmeas que, assim como vêm, se vão na poeira do chão; as freiras que, por assim dizer, eram gêmeas de hábito e de coração; o empregado e o patrão; a apatia e a tentação e, vertigem suprema(!), os ectoplamas se enlaçando em danças fluidas, geracionais.
Um livro escrito sob o signo das águas que insistem em fazer de Serra Morena e de seus moradores um campo fecundo para a literatura da maior qualidade. Obra-prima. Puro deleite e, verdade seja dita, também lamento: posto que nunca mais poderei lê-la com o coração banhado pelo líquido pleno de expectativas que abarca todas as primeiras vezes em que fazemos ou sentimos algo importante ou definitivo. Verdadeiramente definitivo: como navegar em meio ao Fuego.
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