The Reading Room, Carl Larsson, 1909.
Deitada no sofá, imersa na atmosfera de um livro, eu visitava a São Paulo do início do século XX. Mas ao perceber que alguém se aproximava, abandonei a plantação de chá que, naqueles idos de 1900, ocupava boa parte do Centro paulistano para ser imediatamente reconduzida à minha sala, no ano da graça de 2010.
Foi quando levantei a vista e o vi ali, estático, à minha frente. Surpreendida pela aparição, imaginei que ele, por certo, teria escapado do vão estreito de seus estudos e trabalhos.
Era o que demonstravam seus olhos cansados e castanhos cujas pupilas dilatadas traziam um nítido pedido de socorro. Ciente de que eu compreendera a situação, ele respirou fundo e se atirou sobre mim, repousando a cabeça em meu colo – reino onde permaneceu inerte, sem dizer palavra.
Com o impacto, transbordei ternura e passei as mãos sobre seus cabelos – antigo mar negro que, aqui e ali, iniciara um flerte com o troféu cor prata concedido aos lobos.
Mas apesar da intensidade da entrega, a rendição não ultrapassou dois minutos. Obedecendo ao chamado interno que lhe convocava às suas tantas responsabilidades, ergueu-se resoluto como um soldado entrincheirado e, num átimo, partiu rumo ao escritório, localizado no cômodo ao lado.
Por uma fração de segundos, pensei ter ficado sozinha na madrugada gelada, mas logo me dei conta: seu perfume, talvez condoído pelo corte abrupto da cena, decidiu permanecer comigo numa solidariedade típica de aroma.
E a essência invadiu meus poros com sua dança cítrica.
E caiu na correnteza das minhas veias.
E irrigou meu coração, que, durante o restante da noite, e também por horas e horas do seguinte dia, bateu bêbado, em disritmia.
Goimar Dantas
São Paulo,
03 de junho de 2010.