A casa do sol
Acordei estelar porque ontem atravessei o portal na companhia de um xamã.
Do lado de lá, seres elementares nos aguardavam: o sábio senhor do reino, a feiticeira de cabelos de fogo e túnica púrpura, a fada musicista (com instrumentos de corda gravados no corpo e na alma) e a matilha agitada de cães híbridos, loucos, apaixonados, possessivos.
Ao longo de nossa jornada rumo ao centro daquele universo paralelo, todos esses amados súditos da Deusa Hilst nos serviram histórias mágicas, sonhos, alimentos e bebidas quentes.
E lá estávamos nós. Reverentes. Risonhos. Tomados pela epifania daquele momento raro. Ao entrarmos na sala surreal, Mora Fuentes – o doce senhor do reino – sorria enquanto nos abria as veredas de seu peito. Honradíssimos pela deferência concedida, entramos extasiados e, de imediato, deparamos com o gigantismo da barca do seu coração majestoso… Conscientes da oportunidade sem igual, nos posicionamos na proa – de forma a receber o vento daquele lirismo com mais intensidade. Era a senha para navegar rumo à passagem secreta que nos levaria até às memórias do soberano Mora.
Durante o trajeto, olhávamos o caminho sem pressa, admirando cada paisagem, aroma, cor, imagem… Substratos indispensáveis invocados pelo rei sábio que detinha o conhecimento capaz de trazer à tona as linhas e entrelinhas do passado. Hábil capitão da máquina do tempo, Mora era mesmo fuente inesgotável na qual podíamos sorver o elixir que nos conduzia às paixões, desafios e peripécias vividas ao longo das décadas pelos habitantes do clã Hilstiano. Quantas verdades e lendas… Quantos amores, poemas, festas, danças, batalhas, vilões, heróis…
Depois, já banhados pelo sol da memória do rei e pelas cores da casa-arco-íris, fomos conduzidos ao pátio. Espaço nitidamente transcendente, composto por oito arcos que remetiam ao infinito das possibilidades… Escolhemos aquele que nos levaria ao Jardim Real, mais precisamente ao cenário inesquecível da sombra da Figueira centenária. Fincados naquele mágico ambiente regido por Gaia, bancos de pedra ancestrais nos esperavam, solenes. E ao nos sentarmos em matérias minerais tão arcaicas e atávicas, acabamos por formar um círculo místico, eternizado. O pacto estava feito. Estabelecemos, ali, a nossa conexão perene com os desígnios de Hilst.
Ao cair da noite, pouco depois do poente, saltamos da barca da Memória de Mora e caminhamos pela terra sagrada na direção da carruagem prata que nos levaria de volta ao mundo real. Voltamos – eu e o xamã originário da floresta dos pinhos – tentando traduzir a felicidade. Mas, ao perceber a complexidade dessa missão, nos rendemos, de quando em vez, às pausas silenciosas. Nelas, paradoxalmente, podíamos dizer tudo… Ao mesmo tempo, ainda encontrávamos forças para flutuar, velozes, a 130 quilômetros por hora.
Não nos demos conta se a lua estava cheia. Apenas atentávamos para o inevitável dentro de nós: um desejo nítido e pleno… De voltar.
Goimar Dantas, em 15 de julho de 2007.
Texto produzido um dia após visitar a Casa do Sol, com meu amigo Ruy Rebello Pinho. O lugar, localizado próximo a Campinas e recanto mágico por natureza, foi morada da escritora Hilda Hilst. Hoje, o espaço se tornou o Centro Cultural Hilda Hilst, graças ao trabalho e ao empenho de José Luis Mora Fuentes e de seus poucos e bons companheiros. Mora, obrigada por tudo! Esse texto é pra você!
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