Eu tinha 14 anos quando ganhei o perfume da minha vida. Seu nome era Magriff e exalava uma fabulosa fragrância amadeirada. Ainda hoje posso senti-la quando fecho os olhos e me transporto para aquele tempo mítico.
A bem da verdade, não esqueço nada do que diz respeito àquele perfume, a começar pela embalagem inusitada: uma caixa feita de ripas de madeira, como aquelas usadas para transportar frutas e verduras. Outra coisa interessante eram as camadas generosas de palha que forravam o fundo da caixinha, não apenas para impedir que o vidro se quebrasse, mas também para completar a estética rústica do produto, que, apesar do nome metido a gringo, tinha toda a pinta de nacional.
O frasco era pequeno e deveria abrigar não mais do que 50 preciosos mililitros do líquido com cujas gotas eu marcava os territórios dos meus pulsos e pescoço. Já a tampa do vidro possuía formato quadrado, também de madeira, reproduzindo o mesmo tom claro das ripas da caixinha. O mais intrigante, no entanto, era uma raiz(!) que, juntamente com o líquido, enchia de mistério o interior do frasco. Eu nunca tinha visto um perfume que viesse junto com uma raiz, talvez inserida ali para simbolizar a árvore da qual havia sido extraída a essência. A mesma que, por sinal, iria se entranhar em mim para todo o sempre.
Eu havia ganhado o mimo do Saulo, aluno que caiu de pará-quedas na minha classe, bem depois de o ano letivo já ter iniciado. Saulo era um cara engraçado, extrovertido, tagarela. Ficamos amigos de cara e, logo no primeiro dia, ele pediu que eu lhe emprestasse meus cadernos, de modo que pudesse copiar as lições que havia perdido.
Foram semanas até que ele conseguisse finalizar tudo. Mas, como eu também precisava dos cadernos para fazer os deveres diários, Saulo copiava o que podia e, no final da tarde, passava lá em casa para devolvê-los, de modo que eu conseguisse fazer minhas tarefas para o dia seguinte.
Bem, “passava lá em casa” é um modo de dizer. Eu morava numa casa de fundos que ficava em um enorme quintal e, quando ele chegava, encostava a bicicleta no portão, gritava meu nome e batia palmas. Eu ia até ele, pegava o caderno e entrava. Tudo muito rápido. Nunca pude convidá-lo para entrar, tomar um lanche ou coisa assim porque, na minha casa, a entrada de representantes do sexo masculino era terminantemente proibida. Afinal, “Seu Pedro Dantas” era uma fera – dessas que colocaria no chinelo qualquer pai de conto de fadas.
E como toda a vida real rende um ótimo enredo de novela, a fera estava em casa justo na primeira vez em que Saulo foi me entregar os cadernos. Tão logo o coitado gritou meu nome lá fora, meu pai tascou um: “- Que é que esse cabra quer com você?”. E eu, oblíqua, dissimulada e fingindo calma tibetana, respondi: “Ele quer apenas os meus cadernos”. Mas a fera era adepta do estilo coronel nordestino e nunca deu bola nem pra Machado de Assis nem pra Filosofia Zen Budista. Então, em tom de som e fúria, esbravejou: “Pois você avise a ele que eu não quero saber de macho gritando nome de filha minha no portão!”. É claro que eu não avisei e, com a graça de Deus, que, por vezes, é um roteirista generoso, sempre que Saulo reapareceu meu pai estava trabalhando.
Semanas depois, quando terminou de copiar tudo, Saulo surgiu com o presente. Era o perfume. Num rompante de timidez, justificou: “Minha mãe mandou pra você… Ela fez questão porque se não fossem seus cadernos e sua paciência em me emprestar tudo eu ainda estaria todo perdido em sala de aula”. Quase explodi de felicidade! Era tão raro eu ganhar um presente…
Imediatamente me apaixonei pela embalagem, pelo conteúdo, pelo cheiro, pela raiz que, enigmaticamente, era parte do perfume… Por muitos meses, sempre que eu o usava, me sentia, de alguma forma, mais fortemente conectada com o que havia de melhor em minha natureza. Parecia que eu ficava mais forte, mais bonita, mais confiante.
Procurei esse perfume por anos em todas as lojas possíveis e nunca o encontrei. É como se nunca tivesse existido.Ninguém sabe, ninguém viu. Guardei a embalagem vazia por muito tempo, mas, não me lembro como, ela se perdeu no vão da minha existência. Já a lembrança do perfume e sua essência peculiar retornam com força, dia sim, dia também, tomando meu coração de assalto.
Demorei muito para registrar essa história em texto, não sei bem por quê. Mas, agora que ela existe não apenas para mim, quero dedicá-la a Saulo Rodrigues, querido amigo de adolescência, que me concedeu a graça vivíssima dessas memórias.