Vai ver seu coração já não consegue mais administrar os 10 dias de festejos que rendem homenagens a São Sebastião, nas comemorações que se repetem a cada mês de janeiro, no pequeno município de Japi, no Rio Grande do Norte. Da mesma forma, seu coração já não deve mais tolerar tanto barulho de fogos de artifício – que ele insiste em soltar nessas ocasiões festivas.
Talvez, ainda, seu coração não seja tão corajoso quanto seu proprietário, que prossegue guiando sua moto a despeito do trânsito cada vez mais maluco daquela pequena cidade do sertão. Um município onde há centenas de motociclistas, muitos deles com 14, 13, 12 anos… Todos disputando espaço pelas mesmas ruas desprovidas de regras de tráfego. Tio Arnaldo simplesmente ignora esses problemas e segue altivo, conduzindo sua moto devagar, como se perseguisse um vento que nunca vem…
É provável que esse mesmo coração esteja solicitando a Tio Arnaldo um tiquinho mais de descanso nos dias de Carnaval, quando seu portador, seguindo a tradição familiar, se veste de Papa-Angu – personagem folclórico do sertão – para fazer a alegria da molecada da praça central. Não poderia ser diferente uma vez que tio Arnaldo é herdeiro genuíno do meu velho avô Pedro Horácio. Padeiro, eletricista e faz-tudo que, nas horas vagas, também se dedicava a forrós, motos, caçadas, festas e carnavais.
Após a chegada de meu avô ao céu, coube a tio Arnaldo assumir, amorosamente, os cuidados com vó Maria. E todos os dias, pouco depois das cinco da manhã, logo aos primeiros raios de sol, ele entra pela sala estendo a mão e dizendo “- A bênção, mamãe!”, sempre com aquela voz calorosa e inconfundível. Apesar de detestar acordar cedo, juro que nunca me importei de despertar com a voz dele quando me hospedo em minha avó. Ao contrário: acordo feliz porque sei que ele está por perto. E a paz dessa revelação é suficiente para me fazer dormir de novo até 8h, quando ele chega para a segunda visita do dia, normalmente trazendo alguma encomenda solicitada por vovó. À tarde e à noite, ele volta novamente só pra conferir se está tudo em ordem.
Tio Arnaldo é mesmo assim: a prestatividade em pessoa. Quando vamos ao sertão, faz questão de ir até o Aeroporto de Natal nos receber com abraços e lágrimas que derrama amiúde, dando um banho de ternura em nossas chegadas e partidas.
Ainda me lembro da época em que ele deixou o sertão por uns tempos e veio ao Sul Maravilha para trabalhar. Eu tinha cinco anos e achava o máximo ficar na sala com ele, assistindo episódios da S.w.a.t no pequeno e velho aparelho de televisão.
É ele quem resolve tudo pra gente quando vamos a passeio para o sertão. Nos leva para fazer compras, aluga carros, dirige ou serve de guia aos motoristas que nos transportam até a Serra do Bom Bocadinho, nos rincões da Paraíba. Um local de acesso dificílimo… Tudo para que possamos ver minha avó paterna, dona Luzia. Quantas vezes ele mesmo nos levou com seu carro, correndo o risco de danificar seu automóvel de maneira irreversível… E era só pegar a estrada para que ele começasse a apontar cada casa do caminho, fazendo referências aos moradores e às festas que ele e meu pai costumavam freqüentar nessa mesma região, na época da juventude…
“- Olha, Gói, dancei muito forró ali naquele sítio!”, diz ele.
Tio Arnaldo é, no fundo, um sentimental incorrigível. Certa vez foi se despedir da gente e, sem que soubéssemos, manteve um gravador pequeno ligado em seu bolso, de modo que pudesse registrar nossas últimas conversas, palavras, emoções…
Nunca esquecerei do dia em que ele me contou sobre sua emoção ao acordar no meio da noite ouvindo os pingos da chuva. Líquido abençoado que chegava após um longo período de seca. Ele e tia Régia não pensaram duas vezes: correram para a janela e choraram emocionados vendo a chuva molhar a terra… Posso viver cem anos, mas nunca vou perder a magia dessa imagem que sequer presenciei, mas que viverá em mim para sempre.
A bem da verdade, penso que meu tio vem de uma linhagem em que a alma é muito mais poderosa do que qualquer corpo pode realmente agüentar. Mas tio Arnaldo ama demais a vida e, por isso mesmo, resolveu obedecer às ordens médicas, diminuindo o ritmo para que possa nos conceder a honra de sua presença ainda por muito tempo.
E que assim seja… Amém!
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