Preciso compartilhar essa fotografia da minha querida máquina de escrever Royal, ao lado das nove reproduções fac-similares da Revista Klaxon, de 1922, publicadas, por sua vez, em 1972. Trata-se de primorosa e raríssima edição da Livraria Martins Fontes, em convênio com o Conselho Estadual de Cultura, da Secretaria de Estado da Cultura, Esportes e Turismo, do Governo do Estado de São Paulo. Era uma edição comemorativa naquele que foi o ano do cinquentenário da Semana de Arte Moderna.
A máquina é minha, mas a edição das revistas pertence ao meu amigo Leo, que essa semana prometeu que a deixará para mim, em testamento. Leo conta que a Livraria Martins Fontes disponibilizou para venda apenas 200 exemplares dessa edição contendo os nove números da Klaxon, que reúne boa parte do pensamento modernista brasileiro. Temendo ficar sem seu exemplar, no dia anunciado para o início da tal venda, Leo deu plantão na porta da antiga livraria, no Centro de São Paulo. Chegou às seis da manhã e já havia duas pessoas na fila…
Pois Leo me emprestou essa raridade há alguns dias mas, desde então, ainda não tive coragem de lê-la. Explico: algumas publicações têm, a meu ver, um caráter sagrado. Não raro, presto tanta reverencia a elas que chego a temer uma aproximação. Os dias passam e fico ali, olhando esses livros ou revistas, custando a acreditar que, mesmo provisoriamente, estão sob minha guarda, dentro da minha casa, compartilhando espaços na estante da sala ou em meu criado-mudo.
Ouvi falar da Klaxon pela primeira vez na adolescência, mais precisamente no segundo colegial, em uma das inesquecíveis aulas da querida professora Regina, que ministrava o curso de literatura. Durante dois anos Regina me apresentou um mundo inesquecível, composto por autores parnasianos, simbolistas, românticos, naturalistas, modernistas. Nunca poderei esquecer seu entusiasmo declamando poemas de Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Drummond, Vinícius.
Já na hora de aprender inglês – e eram oito aulas por semana, uma vez que cursávamos o técnico em Tradutor e Intérprete -, o que tínhamos era uma professora completamente maluca que usava polainas coloridíssimas e sempre gastava de 10 a 15 preciosos minutos da aula oferecendo aos alunos a muamba que, mensalmente, trazia do Paraguai.
Mesmo assim, dona doida, como a apelidei anos depois, teve seu mérito: devo a ela a graça de ter ampliado meu vocabulário no idioma de Shakespeare, lutando para tentar traduzir, aos 16 anos, os principais contos de Edgar Alan Poe, que ela nos apresentava por meio de discos (sim, sou do tempo dos vinis) que traziam dramatizações dos tais contos. Ficávamos dias e dias decifrando o vocabulário desses textos que, à época, me pareciam grego.
Ainda hoje sou capaz de lembrar o impacto que senti ao ouvir clássicos como “O coração delator” (meu conto preferido de Poe) e “O barril de Amontillado” – tudo isso tendo, ao fundo, trilhas sonoras típicas de suspense, acrescidas da voz maravilhosa do fabuloso narrador (nunca descobri quem era). Deus do céu… Certas lembranças valem uma encarnação. E, nesse meu transe terrestre, essa é uma delas.
Enfim, vim aqui só pra mostrar a foto da Klaxon e da Royal e vejam só onde fui parar? Nas aulas de literatura e inglês de minha adolescência! Incrível como um blog pode, muitas vezes, funcionar como eficiente máquina do tempo.