A força do olhar sempre me comoveu. A capacidade de transmitir informações de modo universal (sem a utilização de palavras), o modo imperativo com que nos faz refém, a intensidade com que costuma se impor, soberano, sobre nossas vontades… Os arrepios emoções, fantasias, sonhos e desejos que pode causar. Não é à toa que os olhos são popularmente conhecidos como “janelas da alma”. Neles, tudo está contido: amor, raiva, ódio, desprezo, compaixão, dor, incredulidade, desespero, medo, pânico, horror, a chama de uma paixão que começa ou as cinzas de uma que já está no fim…
Podemos mentir com gestos ou discursos, mas os olhos trazem, sempre, o real. Talvez por isso seja tão difícil resistir à atração que exercem. Grandes romances e amores têm início após essa incursão momentânea vivenciada pelos casais na sede de entrar pela “janela da alma” um do outro. Filmes, livros e ensaios já foram realizados dedicando-se exclusivamente à análise do tema. Mas não foi exatamente vendo nenhum deles que, pela primeira vez, despertei, de forma consciente, para a verdadeira imensidão de significados que pode advir de uma troca de olhares.
Eu deveria ter uns 20 anos quando assisti Bonnie & Clyde (EUA, 1967, direção de Arthur Penn) pela primeira vez. Lembro de que achei o filme espetacular em todos os sentidos. As atuações primorosas de Warren Beatty e Faye Danaway (acentuadas pela química perfeita entre os dois), a irretocável participação dos demais atores – entre eles Gene Hackman e Estella Parsons, que por sinal faturou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante –, o roteiro, a fotografia… Tudo me levou a uma série de sensações, memórias e associações… Mesmo muito tempo depois, não me sai da cabeça a cena em que Bonnie lê para Clyde um poema (espécie de cordel contando a saga do “casal fora-da-lei”), publicado num dos jornais da época… Da mesma forma, não dá pra esquecer o impacto da indiscutível beleza, jovialidade e sensualidade dos protagonistas – quase uma história à parte dentro do próprio filme.
O enredo traça a trajetória verídica de um casal que, em plena época da recessão americana – provocada pela quebra da Bolsa de Valores de 1929 –, decide enveredar pelo mundo do crime como forma de transcender a vida de pobreza, privações e ausência de perspectiva a que parece estar condenado. Com isso, o que poderia ser uma rápida solução financeira para seus problemas mais cotidianos, transforma-se em uma verdadeira jornada de caráter existencial, pautada pela descoberta delirante da aventura, da transgressão, do perigo, da adrenalina que envolve os roubos, as fugas, as perseguições e, até mesmo, o poder de subjugar o próximo pelo medo, pela violência… Mas o fio condutor da película é, sem dúvida, o amor de Bonnie e Clyde, que vai crescendo em total sintonia com o aumento do cerco policial em torno deles e a conseqüente proximidade da morte que os espera. E foi justamente na cena derradeira do filme que vi, pela primeira vez, o mundo de significados que pode estar contidos em uma única troca de olhar.
Ante a evidência da morte, Faye Danaway e Warren Beatty – travestidos com as personas de Bonnie e Clyde – trocam um olhar capaz de conter Eros e Tânatos, amor e morte, começo e fim. A meu ver, uma das cenas mais marcantes do cinema. Um dado curioso para nós, brasileiros, é que, neste epílogo tão triste quanto inevitável, o personagem vivido por Warren Beatty já perdeu uma das vistas e utiliza um óculos de grau que traz uma das lentes escurecida, fazendo às vezes de tapa olho… Impossível não lembrar de Lampião – que também só tinha uma vista – e Maria Bonita: nosso maior ícone de casal fora-da-lei.
No You Tube, encontrei esse vídeo que traz algumas das melhores cenas do filme, ao som da música “Bad Boyfriend”, da banda de rock americana Garbage. Uma trilha sob medida para ilustrar o quanto pode ser sedutor o tal do “amor bandido” (uma outra forma de olhar o filme, diga-se).
Faz anos que queria transformar em palavras o meu olhar sobre Bonnie and Clyde… Este texto é também um convite para que outras pessoas o vejam (ou revejam), de modo a construir sua visão particular sobre ele.
Afinal, a graça da vida está na multiplicidade de olhares. E na diversidade de interpretações que ela suscita.