Aos 19 anos, quando cursava a faculdade de jornalismo, em Santos, tive a sorte de ter aula de filosofia com o professor e escultor Daniel Leandro Gonzalez, filho do ator e também escultor Serafim Gonzalez, morto em 2007. Daniel conduzia as aulas de uma maneira muito sensível e competente. Não possuía didática, mas sobrava paixão pelo tema – qualidade que verdadeiramente importa em sala de aula.
Ao ouvi-lo, a gente tinha a impressão de estar numa espécie de jornada peripatética, guiados por um Aristóteles contemporâneo que abria mão das túnicas gregas em detrimento de calças brancas e camisas amarelas (é sempre assim que me lembro dele, talvez porque eu guarde fotografias em que Daniel está trajando tais indumentárias).
Ele explicava os pré-socráticos lançando sobre a classe um olhar penetrante e ambíguo que parecia mesclar o tudo e o nada – extremos tão filosóficos quanto paradoxais. O que Daniel dizia soava sempre como algo importante e definitivo e, nesse contexto, só me restava anotar compulsivamente cada uma de suas frases, como se fossem verdades absolutas. Não sei se eram mesmo tudo isso, mas é uma delícia escavar a memória e trazer à tona minha atenção incomensurável e admirada. O curioso é que nunca mais consegui me interessar de forma amorosa pela Filosofia. Sempre leio por obrigação, para complementar/fundamentar temas e pesquisas literárias.
A filosofia de Daniel caminhava de mãos dadas com seu amor pelas artes plásticas e, a cada semana, ele escorregava pela argila imaginária de suas ideias, moldando nossas aulas com o mesmo requinte que até hoje empresta às suas esculturas – espalhadas em hotéis, shoppings, jardins, centros de convenção e outros lugares de destaque na cidade de Santos.
Mas eu não era a única a achá-lo o máximo. Prova disso é que o professor se transformou em uma grande influência para Rogério, meu melhor amigo, que, conforme já contei aqui no blog, perdeu a vida num assalto, aos 20, apenas um ano após descobrir seu amor pela Filosofia. Em pouco tempo, Rogério esbanjava conhecimento na área, enquanto eu continuava tentando entender os pré-socráticos.
Daniel era sensibilíssimo e, certa vez, nos falou de seu amor pelo compositor argentino Astor Piazzolla. Lembro de que ele disse algo como: “Piazzolla, pra mim, é sinônimo de música. Não há nada que me toque mais do que ele”. Achei aquilo tão forte, tão bonito… Ao mesmo tempo, me senti péssima porque, até então, eu não conhecia o maravilhoso autor deLibertango. Por isso, logo que pude comprei um CD do mestre portenho e bastaram três acordes de seu bandoneon para que eu me apaixonasse completamente.
“O anjo”, quadro que comprei da artista Mara Gonzalez, mãe de Daniel.
Anos depois, já casada e com filho, conheci os pais de Daniel e tive a honra de comprar um quadro de sua mãe, a também artista plástica Mara Gonzalez. O quadro se chama “O anjo” e é meu xodó aqui em casa. Segundo Mara, o Anjo retratado na tela está disfarçado de ser humano e vive andando aí pelas ruas, protegendo as pessoas. Não raro, eu associo o anjo a Daniel, a Rogério e também a Diego, um amigo cuja semelhança física com o rapaz do quadro é espantosa. E para além disso, Diego exerce, na vida, o papel de anjo, na medida em que sua missão na Terra é, desde sempre, ajudar as pessoas.
Hoje me deu saudade de Daniel e também daquele tempo distante em que eu me sentia uma estudante cheia de sonhos, habilmente conduzida por mestres aristotélicos e apaixonados. Só resta, como diz o poema de Manuel Bandeira, tocar um tango argentino.