Na manhã deste sábado, dia 28 de março de 2009, minha avó paterna, Luzia, se foi. Estou certa de que partiu agarrada à cauda de um cometa porque, afinal, só astros dessa magnitude têm velocidade compatível com seu jeito espevitado e alegre, do tipo que iluminava todo o ambiente. Pude vê-la em pouquíssimas ocasiões, uma vez que uma distância de três mil quilômetros insistia em nos apartar. Mesmo assim, sempre que nos encontrávamos, eu conseguia observá-la o suficiente para me reconhecer em alguns de seus traços mais evidentes: a tagarelice, o jeito apressado de andar e os olhinhos muito escuros e curiosos.
Vó Luzia tinha 84 anos e era dona de uma inteligência e sagacidade privilegiadas que desaguavam, cotidianamente, em um mar de humor afiadíssimo, ácido, irônico e mordaz. Uma característica rara, herdada, em gênero, número e grau, pela minha irmã, Zilmara. Vó Luzia era daquele tipo que perdia os amigos, os genros, os netos, os filhos, os vizinhos… Mas, perder a piada, jamais!
Por isso, nas duas vezes em que esteve com meu bem, meu “Maurício”, não desperdiçou a oportunidade e mandou bala, dizendo: “Tenho pra mim que esse homi não trabalha. Olha a cara dele, gente?! É muito bonito e acho que é a mulher quem sustenta”. E caía na gargalhada, junto com todos nós. Na sua longa trajetória de vida sertaneja, acostumou-se a achar estranho qualquer representante do sexo masculino que tivesse as mãos livres de calos, bem como cabelos e pele bem cuidados. Em resumo: meu bem meu “Maurício”, sempre com aparência impecável e cabeleira de dar inveja a ator de comercial de shampoo, era um alvo e tanto pra pontaria de vó Luzia.
Destoando da maioria das mulheres – que costuma ter aversão a bebidas fortes -, minha avó, até poucos anos, gostava de tomar umas e outras. Sempre que nos recebia em seu sítio, encravado nos confins da Paraíba, pegava a garrafa de cachaça e, solícita, vinha nos oferecer um gole. Ao ouvir nossa recusa veemente, retrucava, em tom jocoso: “Homi… Tome aqui um bocadinho! Isso não dá coragem, mas tira o medo”.
Vó Luzia nunca negou a máxima euclidiana de que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Prova disso é que nunca deu muita pelota pra sua deficiência física. Apesar de possuir uma perna bem mais curta do que a outra, o que fazia com que mancasse e sentisse fortes dores na coluna, conseguiu dar à luz e – o mais difícil – criar 13 filhos. E é bom que se ressalte: tudo isso no meio do nada, usando as poucas ervas que encontrava na mata para curar doenças, mau-olhado e qualquer outro problema que acometesse a família.
Tinha horror de andar em veículos automotores: sofria de enjoo crônico com o balançar dos carros. Por conta disso, jamais conseguiu viajar para qualquer lugar muito distante de seu sítio. Também eu sofri do mesmo mal, mas, felizmente, o problema sumiu lá pelos meus 15 anos.
Minha avó sobreviveu à morte de meu pai, seu primogênito e, anos mais tarde, à perda de meu avô Zé Dantas, grande paixão de sua vida. Certa vez, me contaram que mesmo já estando próxima dos 50 anos de casamento, ainda escrevia – ou pedia pra alguém escrever, não me recordo – cartas de amor para meu avô, cheias de versos e declarações tipicamente adolescentes.
Tinha uma memória, uma lucidez e uma eloquência invejáveis. Quando nos vimos pela última vez, em janeiro de 2008, fazia exatamente dois dias que havia sofrido um AVC. Fomos até o hospital e, ao nos aproximarmos de seu leito, vó Luzia segurou a mão de minha mãe com força, feliz por vê-la uma vez mais. Mesmo 23 anos após a morte de meu pai, vó Luzia ainda considerava minha mãe como nora, mesmo ela já tendo se casado novamente. Logo após agarrar sua mão, emendou, eufórica: “Onélia, minha filha!!! Você esteve em Japi? Veio de lá? Encontrou fulano? E beltrano, ainda está vivo? E sicrano? E Maria, tua mãe? Como está?” Postas essas primeiras questões, seguiram-se intermináveis minutos em que prosseguia pedindo informações sobre o paradeiro de quase todos os habitantes de Japi, cidade onde meu pai está sepultado, município localizado no Rio Grande do Norte, na divisa com a Paraíba.
Minha mãe ficou constrangida porque não se lembrava de metade daquelas pessoas sobre as quais vó Luzia solicitava notícias frescas. E ao perceber que minha mãe não conseguiria produzir o relatório esperado, minha vó não se fez de rogada e resolveu ajudá-la incluindo comentários que pudessem reavivar suas lembranças: “Onélia, minha filha, fulano é aquele que se casou com “A”, mas que também teve filhos com “B”, “C” e “D”… E então, mulher, lembrou?!” E tudo isso apenas dois dias após sofrer um AVC que paralisou metade do seu corpo ágil/frágil.
Fico imaginando o que minha avó não teria sido se tivesse conseguido estudar. Doutora em comunicações? Autora de novelas? Filósofa? Artista? Humorista? Sinceramente, acho que tudo isso.
Miúda, mantinha os cabelos muito lisos, longos e, ainda negros (!!!!), sempre escondidos sob uma inseparável toquinha em estilo rapper. Nunca entendi o por quê dessa mania num calor daqueles.
Acolhedora, ao saber que iríamos visitá-la, preparava tudo com antecedência, de modo a nos tratar como reis. Ao entrarmos na casa, deparávamos com a mesa já posta para o almoço, mesmo que ainda fosse oito da manhã. Minha vó fazia questão de nos servir, dentro de suas possibilidades, o que era um verdadeiro banquete: arroz, feijão, farofa, frango ensopado e peru – que ela criava, ao que parecia, para ocasiões como essas.
Posso vislumbrar a felicidade de vó Luzia ao chegar do outro lado e encontrar meu avô, meu pai e sua inseparável comadre Cotinha – mais uma figura maravilhosa, madrinha de meu pai e a quem eu também chamava de vó.
Ano passado ouvi o seguinte relato de um parente: “Dizem que Dona Luzia e Dona Cotinha aprontavam todas quando se encontravam. Tomavam sua caninha às escondidas dos maridos e, vez ou outra, atrasavam o almoço simplesmente porque não lembravam onde tinham guardado a bacia com o arroz já lavado. Numa dessas ocasiões, conseguiram encontrar a tal bacia horas depois, dentro de uma gaveta.”
Não sei se é verdade, mas que a história é uma delícia, ah, isso é.
Nos seus últimos dias, vó Luzia sofreu muito, com fortes dores decorrentes de um câncer avassalador descoberto havia cerca de um mês. Mesmo assim, tio Manuel me contou que, no intervalo entre as dores, lúcida como sempre, tirava forças Deus sabe de onde pra fazer graça de uma coisa ou de outra.
Por tudo isso, não me resta a menor dúvida: o céu está, definitivamente, mais alegre a partir de hoje.
A bênção, querida avó… E que eu possa ter ao menos metade de sua inteligência, eloqüência, senso de humor e paixão. Talvez não me dê coragem, mas, com certeza, vai tirar o medo.